A Câmara dos Deputados aprovou, na terça-feira, 18 de novembro de 2025, uma emenda ao Marco Legal do Combate ao Crime Organizado (PL 5582/2025) que suspende o direito de voto de pessoas presas provisoriamente — ou seja, aquelas que ainda não foram condenadas definitivamente. A medida, apresentada pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), foi aprovada em regime de urgência com 349 votos a favor, 40 contrários e uma abstenção. O que parecia ser uma ajuste técnico virou um dos debates mais polêmicos da legislatura, com implicações profundas para a democracia brasileira.
Um voto que não é mais um direito
Antes dessa mudança, a Constituição Federal de 1988 garantia que apenas os condenados com sentença transitada em julgado perdessem automaticamente o direito de votar. Presos provisórios, mesmo encarcerados, mantinham seu título eleitoral ativo. A Justiça Eleitoral, por sua vez, organizava seções eleitorais dentro de presídios para garantir esse direito — um custo logístico, mas um compromisso com a cidadania. Agora, a emenda proposta por van Hattem altera dois artigos do Código Eleitoral: um para incluir a prisão provisória como causa de suspensão dos direitos políticos e outro para cancelar automaticamente o título de eleitor da pessoa detida, sem necessidade de decisão judicial."O voto é expressão da plena cidadania, pressupõe liberdade e autonomia de vontade, condições inexistentes durante a custódia", afirmou van Hattem. Ele insiste que a medida não é uma pena antecipada, nem viola a presunção de inocência — porque, segundo ele, não se trata de punição, mas de condição de exercício de um direito. "Se você não é livre, não pode escolher. É lógico."
Um projeto de lei que vai além do voto
A emenda sobre o voto foi apenas uma parte de um pacote mais amplo. O Marco Legal do Combate ao Crime Organizado também cria penas de 20 a 40 anos para membros de organizações criminosas, podendo chegar a 66 anos para os líderes. Proíbe anistia, indulto e liberdade condicional para esses crimes. Define novos tipos penais como "novo cangaço", controle territorial por meio de violência e ataques a carros-fortes. E obriga líderes de facções a cumprirem pena em presídios federais de segurança máxima.O relator do projeto, Guilherme Derrite (PP-SP), destacou que a remoção do voto também reduz riscos operacionais. "Instalar seções em presídios exige policiamento intenso, transporte de urnas, logística complexa. Isso gera custos e riscos desnecessários", disse. Segundo dados da Justiça Eleitoral, em 2022, foram instaladas 1.342 seções eleitorais em presídios — envolvendo mais de 15 mil servidores e R$ 42 milhões em gastos públicos.
"Votamos sabendo que é inconstitucional"
Nem todos concordaram. O líder do Partido dos Trabalhadores (PT), Lindbergh Farias (RJ), foi direto: "Essa emenda é inconstitucional. Mas vamos votar sim." A ironia veio logo em seguida: "Parece que o Partido Novo já abandonou Bolsonaro. Agora quer tirar o voto dele. Hoje, quem tem trânsito em julgado não vota. Agora, querem antecipar para a prisão provisória — para impedir o voto de Bolsonaro."A insinuação de Farias ecoou por toda a Câmara. Embora nenhum parlamentar tenha citado diretamente o nome de Jair Bolsonaro, o ex-presidente está atualmente sob prisão provisória em um caso de suposta tentativa de golpe. A coincidência não escapou aos observadores. O próprio Farias, que votou a favor, reconheceu que a medida pode ser usada como ferramenta política — mesmo que não seja sua intenção.
O Psol, a Rede Sustentabilidade e partidos da base governista se opuseram abertamente. "Essa é uma das piores regressões democráticas dos últimos 30 anos", afirmou a deputada Talíria Petrone (Psol). "A Constituição não permite que o poder legislativo crie novas causas de inelegibilidade. Isso é um golpe na separação de poderes."
Para o Senado, o fogo ainda não apagou
O projeto completo segue agora para o Senado Federal, onde enfrentará uma batalha ainda mais acirrada. Lá, a análise passará pelas comissões de Constituição e Justiça, e depois pelo plenário. O prazo é indeterminado — mas a pressão popular e jurídica já começa a se organizar.Advogados constitucionalistas como Daniela Lopes, professora da USP, já avisaram: "Se o Senado aprovar, o Supremo Tribunal Federal terá que decidir. E a maioria dos ministros já se manifestou contra a antecipação de efeitos da pena. A jurisprudência é clara: ninguém é culpado até o trânsito em julgado."
Além disso, a medida pode ter efeitos colaterais. Em 2022, cerca de 187 mil pessoas estavam em prisão provisória no Brasil — mais da metade delas por crimes não violentos, como tráfico ou porte de arma. Muitas são jovens, pobres, sem acesso a bons advogados. Tirar o voto delas não apenas as exclui da política — mas reforça a ideia de que são "menos cidadãs".
Quem ganha e quem perde com isso?
O governo federal, que originalmente propôs o PL Antifacção como instrumento de combate às facções, agora vê seu próprio projeto se transformar em um instrumento de controle político. A oposição, por outro lado, perde uma vitória simbólica: o direito de voto como símbolo de dignidade.Organizações como a Conselho Nacional de Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já anunciaram que acompanharão o caso de perto. A ONU também já se manifestou em outros países contra a suspensão do voto para presos provisórios — considerando-a uma violação da Convenção Americana de Direitos Humanos, que o Brasil assinou.
O que vem a seguir?
A expectativa é que o Senado adie a votação até o início de 2026, permitindo mais debates e análises jurídicas. Mas o que está em jogo não é só um projeto de lei. É o princípio de que, mesmo na prisão, a cidadania não se apaga. Se o voto é um direito, ele não pode ser negado por uma decisão administrativa — nem por uma maioria no Congresso.Frequently Asked Questions
Por que a emenda é considerada inconstitucional?
A Constituição Federal de 1988, no artigo 15, só permite a suspensão dos direitos políticos após condenação com trânsito em julgado. A emenda proposta pela Câmara cria uma nova causa de inelegibilidade sem alteração constitucional, o que viola o princípio da reserva legal e da presunção de inocência. Juristas como Daniela Lopes (USP) e a Ordem dos Advogados do Brasil já apontam que o Supremo Tribunal Federal provavelmente anulará a medida se ela for aprovada no Senado.
Quantas pessoas deixarão de votar com essa mudança?
Segundo dados do CNJ, em novembro de 2025, havia 187.342 pessoas presas provisoriamente no Brasil. Desse total, cerca de 92% não tinham condenação definitiva. Isso significa que quase 200 mil eleitores poderão ter seus títulos cancelados automaticamente — mesmo sem julgamento. A maioria desses presos são jovens, negros e de baixa renda, grupos historicamente marginalizados no processo político.
A emenda visa realmente impedir o voto de Jair Bolsonaro?
Nenhum parlamentar disse isso publicamente, mas a coincidência é evidente. Bolsonaro está preso provisoriamente desde abril de 2025 em um caso de suposta tentativa de golpe. Ele ainda não foi condenado, mas tem direito ao voto. A emenda, ao eliminar esse direito, afeta diretamente ele — e potencialmente outros líderes políticos em situação semelhante. A crítica de Lindbergh Farias reflete o sentimento de muitos que veem a medida como instrumentalização política disfarçada de combate ao crime.
O que acontece se o Senado aprovar a emenda?
A emenda entrará em vigor após ser sancionada pela Presidência da República. Mas, por ser inconstitucional, qualquer cidadão poderá impetrar uma Ação Declaratória de Constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. A tendência é que o STF a suspenda rapidamente, como fez em 2018 com uma medida semelhante sobre presos em regime fechado. O risco é que o Congresso tente reescrever a Constituição — algo que exigiria uma nova votação em dois turnos com 3/5 dos deputados e senadores.
Há precedentes internacionais para essa medida?
Não na América Latina. Países como Argentina, Chile e Colômbia garantem o voto a todos os presos, inclusive os provisórios. Nos EUA, a regra varia por estado: alguns impedem votos de condenados, mas nenhum bloqueia presos provisórios. A União Europeia considera a suspensão de direitos políticos para presos provisórios uma violação da Convenção Europeia de Direitos Humanos. O Brasil, ao adotar essa medida, se afasta de padrões internacionais de direitos humanos.
A Justiça Eleitoral já se posicionou sobre isso?
Sim. Em 2024, o TSE já havia reafirmado, em resolução, que a prisão provisória não é causa de cancelamento de título. O próprio Tribunal entende que a suspensão do voto exige condenação judicial definitiva. Com a aprovação da emenda, a Justiça Eleitoral terá que escolher entre obedecer ao Congresso ou à Constituição — e isso pode gerar um conflito institucional sem precedentes.